Quem chega à sala sempre é convidado: "-Olá, posso lhe mostrar meu baú de coisas lindas. Quer ver?". E, com um sorriso estampado na face, o baú é aberto. Os olhos de seu dono brilham, como se refletissem ouro. A tampa, aberta lentamente, não faz barulho; um som de flauta doce se propaga naquele cômodo. Um perfume de alfazema exala forte e intenso, tornando todo o ambiente um lugar de paz. Quando a tampa já não encobre mais seu conteúdo, novamente um convite: "Pronto, aqui estão minhas coisas lindas. Queira se aproximar, para vê-las em sua plenitude. Isso, venha, não precisa ter receio, te dou minha mão. Será bom, será mágico."
O suor escorre na testa. Ao se aproximar daquele caixote (não pode ser chamado de baú...por Deus!) de madeira pobre e podre, um ar frio toma conta de todo o ser. Nada nunca se mostrou tão terrivelmente gelado antes! Como se as calotas polares derretessem aos seus pés. As curiosas janelas d'alma então se arriscam fitar o interior da caixa miserável. A boca cala, a respiração involuntariamente cessa por alguns segundos. Os olhos, a princípio esbugalhados de terror, dão lugar as salgadas e intensas lágrimas. Não havia outra forma de olhar aquilo. Os pêlos se levantam, o corpo todo treme. Um desmaio é ensaiado, porém, antes que aquela força tome conta, os pés guiam para fora daquela sala, daquela casa, daquela presença. Na mente então um monólogo se inicia.
"-Quanta tristeza e angústia. Quanta escuridão pôde ser vista. Marcas de açoite e lama, marcas de dentes e sangue. Nenhuma cicatriz fechada e limpa. Beleza alguma. Ao se deparar com suas imundices, as trancou nessa cela, e criou uma cobertura de sonhos para escondê-las. Cada pedaço morto de vida que tinha, cada grão e cada cor; fantasiou ser tudo magnífico, desde o que tinha em sí como o que recebia de outrém. Pobre alma."
Fugiu então dali. Só pensava em chegar em seu lugar, seu recanto,seu ninho. Correu, para não ter que esperar mais. Ao abrir a porta, o coração se acalmou. Um copo d'agua, um banho, e aquelas horríveis imagens tinham se dissipado. Sentou-se então confortavelmente em seu sofá. E olhou, demoradamente para aquele baú, que se encontrava no centro da sala como um troféu, exibido com orgulho, sem pudor, sem dor. Sorriu e cegou.
"-Olá, posso lhe mostrar meu baú de coisas lindas. Quer ver?" ...
((( I )))
...Cada um tem o seu!